Disseram-lhe que para escrever é necessário o olhar de Orfeu, metáfora
usada para o gesto de voltar-se para trás, para o texto escrito e encará-lo sob
o risco de perdê-lo. Quem tem medo de olhar o próprio texto? No jogo poético de
Orfeu, sua lira encanta os seres corpóreos e incorpóreos, seduz como poeta e
como bom escritor. Orfeu entretém bestas em cortejos, cadencia o trabalho dos
remadores da Nau de Argo e, com sua voz, ofusca o canto das sereias que
seduziam todo navegante. Orfeu flerta o dia e quer ser amado, como qualquer lireratura
maior; e você sabe que bons textos e essa literatura repousam
superfície limpa dos arquivos virtuais. Num sobressalto você percebe que a
escrita se esquiva de você como Eurídice, desaparecida em sombras, esquiva-se
dos dias e todo cotidiano com Orfeu. E é somente com a recusa de Eurídice que
aturdida você intui que para escrever é necessário estar em sombra com
Eurídice. Míope, você tenta enxergar na claridade do dia (sob a luz de Orfeu) e
resiste: todos dispostos a escrever estão numa espécie de pequena luz, se
alimentam de lampejos quase imperceptíveis, de escritas que acontecem em pequenos clarões,
em feixes de luz e frestas sombrosas de infernos pulsantes. A imagem que lhe
ocorre é a impossibilidade de uma grande
luz, que ilumina apenas alguns bons textos. Você conclui que todos
dispostos a produzir através da escrita estão, nauseadamente, na pequena luz.
Escrever com Eurídice é escrever na profundidade necessária para um “gênero
órfico de vida” que consiste em você juntar fragmentos inventados em
tumultos de palavras que dispostas em frases, cadenciam textos com predileção
para nebulosidade das sombras onde desvios devaneios aparecem e desaparecem
como Eurídice esquivando-se do dia com Orfeu.
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