segunda-feira, 6 de novembro de 2017

Disseram-lhe que para escrever é necessário o olhar de Orfeu, metáfora usada para o gesto de voltar-se para trás, para o texto escrito e encará-lo sob o risco de perdê-lo. Quem tem medo de olhar o próprio texto? No jogo poético de Orfeu, sua lira encanta os seres corpóreos e incorpóreos, seduz como poeta e como bom escritor. Orfeu entretém bestas em cortejos, cadencia o trabalho dos remadores da Nau de Argo e, com sua voz, ofusca o canto das sereias que seduziam todo navegante. Orfeu flerta o dia e quer ser amado, como qualquer lireratura maior; e você sabe que bons textos e essa literatura repousam superfície limpa dos arquivos virtuais. Num sobressalto você percebe que a escrita se esquiva de você como Eurídice, desaparecida em sombras, esquiva-se dos dias e todo cotidiano com Orfeu. E é somente com a recusa de Eurídice que aturdida você intui que para escrever é necessário estar em sombra com Eurídice. Míope, você tenta enxergar na claridade do dia (sob a luz de Orfeu) e resiste: todos dispostos a escrever estão numa espécie de pequena luz, se alimentam de lampejos quase imperceptíveis, de escritas que acontecem em pequenos clarões, em feixes de luz e frestas sombrosas de infernos pulsantes. A imagem que lhe ocorre é a impossibilidade de uma grande luz, que ilumina apenas alguns bons textos. Você conclui que todos dispostos a produzir através da escrita estão, nauseadamente, na pequena luz. Escrever com Eurídice é escrever na profundidade necessária para um “gênero órfico de vida” que consiste em você juntar fragmentos inventados em tumultos de palavras que dispostas em frases, cadenciam textos com predileção para nebulosidade das sombras onde desvios devaneios aparecem e desaparecem como Eurídice esquivando-se do dia com Orfeu. 

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